Fabricantes apostam em 'híbrido flex' enquanto país sul-americano traça caminho alternativo para descarbonização
Michael Pooler e Bryan Harris | Financial Times em São Paulo
Enquanto a indústria automotiva global se volta para veículos movidos a baterias contendo minerais como lítio, níquel e cobalto, fabricantes no Brasil acreditam no futuro de linhas de carros mais limpos em uma combinação de tecnologia elétrica do século 21 e uma commodity do velho mundo: o açúcar.
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| A maioria dos veículos de passeio vendidos na maior economia da América Latina já é capaz de rodar com uma mistura de gasolina e etanol © de baixa emissão Miguel Schincariol/AFP/Getty Images |
A maioria dos automóveis de passeio vendidos na maior economia da América Latina já é capaz de rodar com uma mistura de gasolina e etanol de baixa emissão, biocombustível que no Brasil é derivado principalmente da cana-de-açúcar.
Montadoras multinacionais como Stellantis, Volkswagen, Mitsubishi e a chinesa Great Wall Motor estão fazendo investimentos no valor de bilhões de dólares para adicionar um grau de eletrificação a esses chamados carros de combustível flexível.
A aposta é em uma variante tecnológica praticamente exclusiva do país sul-americano: versões a biocombustível de automóveis híbridos, que usam tanto um motor de combustão interna tradicional quanto um motor elétrico para propulsão.
Esses veículos são conhecidos como "híbridos flex". A indústria automobilística brasileira classifica a inusitada categoria como um passo importante na busca pela redução da poluição por dióxido de carbono proveniente do escapamento.
No entanto, alguns ambientalistas questionam se as credenciais mais limpas do etanol de fato ameaçam impedir a adoção pelo país de carros totalmente movidos a bateria - os veículos "mais limpos" de todos.
Roberto Braun, diretor de meio ambiente, social e governança da Toyota do Brasil, descreveu a tecnologia híbrida flex como "a melhor e mais adequada" para o país.
"Um veículo híbrido flex no Brasil movido a etanol tem emissões de CO₂ muito semelhantes a um veículo elétrico movido a eletricidade na Europa", disse. "Como o Brasil é um grande player em biocombustíveis, tem um [caminho alternativo para] a descarbonização além do que outros países estão considerando".
Tendo lançado o primeiro híbrido flex do mundo em 2019 e com 75.000 vendidos até o momento, a empresa japonesa planeja revelar outros dois modelos do tipo nos próximos anos sob um pacote de gastos de capital de R$ 11 bilhões (US$ 2,1 bilhões) anunciado em março.
Os híbridos flex fazem parte de uma recente onda de investimentos que promete atualizar a montadora brasileira. As montadoras prometeram cerca de R$ 77 bilhões (US$ 14.bn) ao país apenas em 2024, gerando esperanças de uma retomada do setor após uma década de estagnação.
Braun observa que o modelo híbrido flex é "uma tecnologia prática porque não requer recarga elétrica ou qualquer mudança nos hábitos do consumidor".
"O híbrido-flex custa cerca de 10% a 15% a mais do que um veículo flex normal da mesma categoria, então não está muito longe em termos de preço", acrescenta.
Os defensores do etanol, que está disponível em todos os postos de abastecimento no Brasil, dizem que é uma opção viável de baixo carbono em uma economia em desenvolvimento, onde os preços mais altos dos EVs são proibitivos para a maioria dos consumidores. O combustível à base de cana-de-açúcar pode reduzir as emissões de CO₂ em 73% em comparação com a gasolina, de acordo com um estudo de 2009 da Embrapa.
Ao mesmo tempo, o tamanho e o terreno variado do Brasil tornam a implantação da infraestrutura de recarga um enorme desafio.
No entanto, alguns ambientalistas argumentam que a proeminência do biocombustível ameaça dificultar a adoção de carros totalmente movidos a bateria.
O Brasil é o sétimo maior mercado de carros do mundo, mas fica atrás dos países mais ricos em veículos elétricos. Embora as vendas de veículos movidos a bateria e híbridos quase dobraram em 2023, para 94.000, elas representaram apenas 4,3% de todas as entregas de veículos comerciais leves e de passageiros.
"Quanto mais tempo o Brasil se comprometer com o etanol, maior a chance de se tornar um retardatário nesse novo paradigma tecnológico", diz Luciana Castilla, pesquisadora de transição energética da Universidade de São Paulo.
Se fabricantes e compradores aderirem aos veículos flex, o corolário é que a indústria pode lutar para alcançar as economias de escala necessárias para reduzir os custos dos EVs completos para níveis mais acessíveis, argumentam os céticos.
O caso de amor do Brasil com o etanol remonta à década de 1970, quando a crise internacional do petróleo levou a ditadura militar a promover o biocombustível. As plantações de cana-de-açúcar foram uma pedra angular da colonização portuguesa e continuam a ser uma indústria importante até hoje.
Desde que os carros flex foram introduzidos pela primeira vez há duas décadas pela VW, eles passaram a representar cerca de 90% das vendas totais de veículos de passeio – resultando na maior frota do mundo.
Mesmo os motoristas que não abastecem com etanol puro acabam queimando-o, já que por lei a gasolina deve ser misturada com 27% do biocombustível, o nível mais alto exigido globalmente. Outros mercados usam mistura de etanol mais baixa, como uma mistura de 10% de etanol e gasolina comum no Reino Unido, Tailândia e EUA.
Se os ativistas verdes temem que os híbridos flex possam segurar a eletrificação mais avançada, a BYD e a Toyota estão procurando impulsionar a tecnologia projetando versões "plug-in", que estão mais acima na escala de eletrificação do que um híbrido flex normal.
"Em breve teremos o lançamento desse modelo, desenvolvido tecnologicamente no Brasil e aumentando o desempenho e a autonomia de um carro movido a etanol", disse o presidente local da BYD, Alexandre Baldy.
Enquanto os híbridos comuns não exigem carregamento externo e são mais dependentes do motor a combustão, os híbridos plug-in oferecem dezenas de quilômetros de condução em modo somente elétrico.
No entanto, subsistem dúvidas sobre a eficácia ambiental da aposta nos híbridos flex, mesmo os da variedade plug-in.
André Cieplinski, pesquisador da organização sem fins lucrativos International Council on Clean Transportation, descreveu a rota como uma "rota arriscada", explicando que estudos sugeriram que as reduções de emissões dos híbridos plug-in foram menores do que se pensava anteriormente.
"Adotar estratégias agora que tenham um potencial de mitigação mais limitado pode resultar em políticas apressadas e mais caras no futuro, se quisermos cumprir a meta de zero líquido [do Brasil] até 2050", acrescentou.
A aposta mais ampla do setor é que as diferentes tecnologias oferecidas aos motoristas brasileiros ajudarão a impulsionar uma nova era para a fabricação nacional de carros, após inúmeros fechamentos de fábricas nos últimos tempos. Em um cenário de longo mal-estar econômico, o setor tem lutado para se recuperar do pico de produção de 2013, de pouco menos de 3 milhões de carros de passageiros, com 1,8 milhão de unidades fabricadas no ano passado.
Embora globalmente os veículos flex sejam relativamente de nicho - EUA, Canadá e Suécia são outros mercados notáveis -, os defensores no Brasil veem potencial para exportá-los para os vizinhos Paraguai e Índia, onde as autoridades acreditam que o biocombustível pode diminuir as importações de petróleo.
Apesar da preferência nacional por carros de cana-de-açúcar, o Brasil avança na produção de veículos elétricos a bateria completa (BEV). A BYD planeja iniciar a montagem até o final deste ano, com produção nacional completa até meados de 2025.
O grupo chinês, que é o maior fabricante mundial de veículos elétricos em volume, está montando sua primeira fábrica de carros fora da Ásia, na Bahia, e recentemente aumentou seu orçamento de investimentos para R$ 5,5 bilhões.
A parte mais complexa e cara dos carros elétricos é a bateria, que por enquanto será importada para o Brasil. Mas, à medida que o país inicia a mineração de lítio em larga escala, a aspiração de Brasília é pela fabricação nacional desse componente-chave.
"É preciso que haja demanda e escala para que não seja muito caro", disse Ricardo Bastos, presidente da Associação Brasileira de Veículos Elétricos e também diretor da Great Wall Motor. "O Brasil não pode ficar preso à tecnologia de combustão", acrescentou. "O mundo já está exigindo carros elétricos, então teremos que ser capazes de produzi-los aqui."
Reportagem adicional de Beatriz Langella


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